Hubris, o verdadeiro calcanhar de Aquiles
A Ilíada apresenta claramente o problema da indulgência e da ambição que quebra a
ordem e leva o homem à perda de seu lugar e medida no mundo.
A impiedade é o fruto deste ato e a tragédia a consequência de sua hybris (ὑuβρις)
Cabe aqui não esquecer a admoestação do preceptor de Aquiles, o sábio Fênix no
Canto IX
“ Por isso, ó Aquiles, domina o teu espírito orgulhoso.
Não te fica bem um coração
insensível.
Os próprios deuses cedem, eles que tem maior valor, honra e força.
Com
incensos, juramentos cheios de reverência, libações e aroma do sacrifício os
homens conseguem propiciá-los, quando alguém erra ou transgride."
Domar seu thymos, a capacidade de auto-governo, uma disposição de
“agir
voluntariamente, mas contra a vontade do thymos"
Não há nenhuma contradição dentro do mesmo órgão, mas entre o homem e seu
órgão, que apoiado pelos dons dos deuses, o homem doma este ânimo.
A força de auto-superação e apropriação da realidade é o que distingue um
spoudaios –
homem maduro que se recusa a uma existência desordenada (bios
theoretikos)
É esta virtude intelectual o que permite ao homem dirigir-se a si mesmo
enfrentando sua cólera (menis: termo épico solene aplicável a qualquer ira divina ou
humana)
A Ilíada é um canto sobre o perigo da cólera:
"Pélida mortífera, que tantas dores trouxe
aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades”
Caroline Alexander , em seu livro "The War that killed Aquiles"
aponta para uma crise de legitimidade (onde o sacrifício se
torna vingança) ,
expressa na Ilíada, que é no seu entender, um épico marcial:
“...talvez seja a declaração de Homero que os velhos valores heróicos encobertos
em sua prolixidade amorfa não são mais relevantes. Com sua rejeição cabal aos
presentes convencionais, aos apelos convencionais e acima de tudo ao código de
honra convencional, Aquiles adentrou um novo terreno onde as histórias sobre o
que motivava os homens de antigamente - kléa andron - não tem mais força”
Aquiles mata de uma vez só, vários troianos e enche o rio Escafandro,
(também
denominado Xanto) de cadáveres.
O rio, indignado, toma a forma humana e diz que Aquiles supera todos os homens
em ações ímpias.
‘Se te concedeu o
Crônida chacinares
todos os Troianos, ao
menos escorraça-os
para fora da minha
corrente e pratica a
carnificina na planície.
Minhas correntes
amoráveis estão cheias
de cadáveres, nem
consigo derramar
minhas águas no mar
divino, pois está tudo
entupido com os
corpos
que tu mataste sem piedade.
Agora deixa-me em paz
O espanto me domina, ó senhor das hostes”
Esta acusação de impiedade mostra a exaltação da violência, como uma intoxicação
de Aquiles com seu próprio poder e grandeza – uma megalomania
A expressão “mega phronein”- pensar grande costumava ser utilizada pelos gregos
com um significado pejorativo – de presunção e arrogância.
Aquiles não vê mais
valor no código de honra convencional.
Como diz o rio:
“Ó Aquiles, aos homens supera na força e no mal que praticas”
Importante lembrar que Homero escreveu durante o desvelamento do conceito de
Psique.
Ele observou a correlação entre a desordem da sociedade e a desordem da alma
individual e iniciou um caminho de investigação das doenças ônticas (espirituais).
Vale pontuar que para o mundo Homérico não existe uma distinção entre alma e
corpo,
entre o intelectual e o afetivo.
entre o intelectual e o afetivo.
Para falar com exatidão , eu deveria dizer: o que interpretamos como alma, o
homem homérico interpreta como se aí houvesse três entidades, o que ele
concebe segundo analogia
dos órgão corporais.
As paráfrases para psyche, nous e thymos como órgão
da vida, do pensar e das emoções anímicas.
da vida, do pensar e das emoções anímicas.
“Mas agora o deixemos: que parta ou que fique
.Novamente combaterá, quando o
coração no peito o mandar e uma divindade o incitar”
Vemos que a motivação para a ação do herói é dupla, simultaneamente individual e
divina.
“os impulsos internos do ser humano e a intervenção divina se fundem na mesma
ação, que é motivada em ambas as esferas”
A garantia da ação humana só pode ser mediante a garantia fornecida pela
divindade
“Enquanto isto pensava no espírito e no coração,
Tirando a espada da
bainha, chegou Atena, vinda do céu.
Mandara-a a deusa Hera de alvos braços,
pois a
ambos ela estimava e protegia no seu coração.
Postou-se atrás dele e agarrou no
loiro cabelo do Pélida, visível apenas para ele.
Nenhum dos outros a viu.
Espantou-
se Aquiles ao voltar-se para trás; e logo Palas Atena, cujos olhos faiscavam
terrivelmente.E falando dirigiu-lhe palavras aladas ” (Canto I, 193 -201)
O brilho terrível do olhar da jovem de claros
olhos (glaukopis) representa , aqui a clareza de
ação, e a proximidade de Aquiles com essa deusa
indica o seu acercamento da atitude inteligente,
reflexiva, que não se dá pelo impulso, pela
imediatez mas pela ponderação e, pelo exame
atento da ocasião.
O espanto (thambós) , reação decorrente, aqui do
contato direto – o reconhecimento imediato da
divindade; e a exclusividade de sua aparição, a
deusa lhe veio conter o furor (menós) e aconselha
a abandonar a fúria e guardar a espada.
Chama por sua disposição a razão, para que largue os seu sofrimento vivencial e desmedido
(impiedade) e controle sua hubris, elevando seu sofrimento a
uma possibilidade racional (sentido de proporção).
uma possibilidade racional (sentido de proporção).
Em Homero, thymos é órgão anímico – espiritual que suscita os movimentos e
as reações um princípio do movimento.
É o órgão das emoções anímicas, sede da alegria, do amor ,da compaixão.
É o órgão das emoções anímicas, sede da alegria, do amor ,da compaixão.
Uma dor corrói ou ataca o thymos, abalando portanto a capacidade do homem para agir.
Cabe portanto a prudência de se recolher, retomar o juízo antes de exercer seu poder.
Esta busca por um saber ou poder sobre–humano, esta megalomania é o que
Homero apresenta como impiedade (asebia).
Aristóteles retoma a importância deste regime da inteligência, da phrônesis como a disposição a um pensamento humanizado, ou seja que;
“tem dimensões benevolentes visto que pode-se pensar as coisas divinas humanamente, ou seja com reserva e sentimento de distância”
A Prudência não é uma ciência, um corpo de conhecimentos, mas uma prática, uma constante aquisição, uma habitude da alma.
Um saber que suspeita de seus próprios malefícios e tem consciência de seus limites.
Como declara Pierre Auberque em seu estudo sobre a prudência em Aristóteles:
“...organizar o humano é o sublunar, é uma tarefa grande para o homem, guiado sobretudo pela sabedoria, ou seja, pela contemplação distante do divino: liberto de esperanças vãs, de ambições desmesuradas, voltado à tarefas reais, embora sempre guiado pelo horizonte do transcendente, o homem é convidado a cumprir no interior de sua condição mortal, o que ele sabe, no entanto, não pode cumprir como tal.”
Aristóteles retoma a importância deste regime da inteligência, da phrônesis como a disposição a um pensamento humanizado, ou seja que;
“tem dimensões benevolentes visto que pode-se pensar as coisas divinas humanamente, ou seja com reserva e sentimento de distância”
A Prudência não é uma ciência, um corpo de conhecimentos, mas uma prática, uma constante aquisição, uma habitude da alma.
Um saber que suspeita de seus próprios malefícios e tem consciência de seus limites.
Como declara Pierre Auberque em seu estudo sobre a prudência em Aristóteles:
“...organizar o humano é o sublunar, é uma tarefa grande para o homem, guiado sobretudo pela sabedoria, ou seja, pela contemplação distante do divino: liberto de esperanças vãs, de ambições desmesuradas, voltado à tarefas reais, embora sempre guiado pelo horizonte do transcendente, o homem é convidado a cumprir no interior de sua condição mortal, o que ele sabe, no entanto, não pode cumprir como tal.”
A questão da Impiedade (perda do limite do
humano) , como uma raiz do problema da angústia,
traz uma dimensão metafísica ao problema .
A perda da fundamentalidade da existência; modo como sente a personalidade aquele que se perdeu na complexidade de sua vida.
Este é o caso de Aquiles, que não escuta o mestre e usa seu orgulho ferido como
medida de justiça,
Veja o áudio desta análise no podcast :
Hubris, o verdadeiro calcanhar de Aquiles
As dificuldades da tradução comentada pelo autor : Frederico Lourenço
https://youtu.be/dLaXjNZYF8g
A perda da fundamentalidade da existência; modo como sente a personalidade aquele que se perdeu na complexidade de sua vida.
Este é o caso de Aquiles, que não escuta o mestre e usa seu orgulho ferido como
medida de justiça,
Veja o áudio desta análise no podcast :
Hubris, o verdadeiro calcanhar de Aquiles
As dificuldades da tradução comentada pelo autor : Frederico Lourenço
Sugestão de leituras complementares :
A descoberta do espírito - Bruno Snell das Edições 70
A prudência em Aristóteles - Pierre Aubenque - Editora Paulus
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