A enfermaria n° 6

 

Em russo, “Enfermaria n° 6” é “Палата номер шесть”, a palavra russa “palata” (Палата), utilizada por Tchekhov para nomear a novela, tem vários significados: palácio, edifício grandioso; em sentido figurado, uma pessoa muito sábia. Quando diz respeito as instalações hospitalares, significa enfermaria, pavilhão. O que demonstra que diversos significados estão atrelados a essa palavra: é o espaço do poder, da cura, da justiça, da sabedoria.

O conto foi publicado em 1892 e escrito após a longa viagem do escritor à colônia penal de Sacalina, um impulso explicado em carta ao amigo Leontiev :

"Por favor, não deposite esperanças literárias em minha viagem a Sacalina. Não estou indo para observar, nem para buscar impressões, e sim para viver de maneira diferente da que tenho vivido até hoje" 

Mas é impossível não ouvir os ecos neste conto, desta experiência vivida e narrada em um livro minuciosamente escrito, sobre as condições precárias dos condenados de Sacalina. 

Sacalina  pode ser entendida como uma metáfora da contínua pesquisa do escritor sobre o sofrimento, em carta de 1890, ele explica ao seu editor Suvórin :

"Sacalina é o lugar dos mais intoleráveis sofrimentos que o ser humano, livre ou forçado é capaz de suportar (...). Lamento, não ser sentimental, senão diria que a lugares como Sacalina nós devemos uma peregrinação, como os turcos vão a Meca; os marinheiros e os responsáveis pelos presídios, em particular, devem olhar para Sacalina, como os militares olham para Sebastópol....Atualmente, toda a Europa culta sabe que os culpados não são os carcereiros, e sim nós, mas nós nada temos a ver com isso, isso não interessa "

A Enfermaria n° 6, que dá nome à novela, é uma ala de um hospital que fica numa cidadezinha longínqua da Rússia. A novela narra a história de sujeitos que transitam em torno dessa enfermaria, sendo o principal deles Andréi Iefímitch Ráguin, diretor do hospital, que ocupa o cargo há mais de 20 anos e chegou na cidade recém formado.

No primeiro capítulo da novela de Tchekhov, temos a apresentação do hospital, seu exterior e seu interior. Uma imagem panorâmica é apresentada ao leitor, com close em alguns detalhes: telhado enferrujado, chaminé meio desabada, degraus da entrada apodrecidos. O narrador parece caminhar pelo hospital e descreve, como se estivesse num tour, aquilo que vê. O hospital é separado do campo por um muro cinzento coberto de pregos 

“ As janelas foram enfeiadas interiormente por grades de ferro.O soalho é cinzento, soltando lascas. Há um odor fétido de chucrute, pavios queimados, percevejos e amoníaco (...) Há na sala  camas aparafusada ao soalho.Nelas estão sentadas ou deitadas pessoas de roupão hospitalar azul (...) Enfim, um manicômio "

 O paciente mais importante e com maior destaque é um homem da pequena nobreza, Ivan Dmítritch Gromov, que enlouqueceu de repente, porque um dia viu dois presos serem levados por quatro guardas. Desse dia em diante, Ivan Dmítritch ficou com mania de perseguição, achando que poderia ser preso a qualquer momento, por ter cometido algum crime, mesmo sem querer.Tchekhov o descreve assim: 

“A sua fala é desordenada, febril, como que num delírio, por arrancos e nem sempre compreensível, mas, em compensação, percebe-se nela, tanto na voz como nas palavras, algo extraordinariamente bom. Quando fala, você reconhece nele o louco e, ao mesmo tempo, a pessoa humana” 

 A loucura e a sanidade estão misturadas nessa pessoa, ele não é totalmente louco, mas também não é totalmente são. Aliás, seu medo de ser preso a qualquer momento é justificado:

 “um juiz, para destruir um homem inocente de todos os direitos civis e condená-lo aos trabalhos forçados, só precisa do seguinte: tempo. Apenas tempo para a execução de umas poucas formalidades, pelas quais o juiz recebe um ordenado, e a seguir tudo acaba”

   O tom adotado por Tchekhov é denso, a história é narrada quase sem apelo cômico, o leitor é colocado diante de uma tragédia cotidiana. Ao adotar as listas como único recurso para diagnosticar, os médicos cometem o erro de não olhar o ser o humano como um todo, com suas particularidades.

Tchekhov propõe claramente aqui e na novela “Uma história enfadonha” uma terapia individualizada, para a qual o interrogatório constitui a parte mais importante para a formulação do diagnóstico. Tchekhov, que também era médico, admirava o psiquiatra russo Zakhárin, e encontramos no “método científico da escola de Zakhárin"alguns preceitos que aparecem na obra de Tchekhov, e que seriam melhor desenvolvidos pela psiquiatria mais tarde, como a individualização, a consideração de todos os fatores subjetivos. 

 É uma estética própria que permite Tchekhov causar o efeito de desconforto em seu leitor, e ele o faz através da própria precariedade das condições da prática da medicina.

 Ficamos incomodados no momento em que Andréi Iefímitch passa a freqüentar diariamente a Enfermaria nº 6 para conversar com Ivan Dmítritch – a única pessoa com quem o médico julga possível estabelecer um diálogo. Assim, Ivan assume um papel de duplo, ou seja, ele é uma espécie de alter-ego do médico e diz aquilo que Andréi queria pensar, mas que já lhe é completamente impossível por conta de sua indiferença com o mundo. O paciente tenta mostrar ao doutor que há dor, sofrimento e que tudo isso deveria ser superado, de que há alguma coisa errada no mundo; o médico, por sua vez, vê tudo com indiferença, dor ou não dor, fraque ou roupão de hospital, todos morrerão.
A partir desse momento, em que Andréi Iefímitch e Ivan Dmítritch estabelecem um diálogo íntimo; os amigos e pessoas que vivem ao redor do médico começam a olhá-lo com desconfiança. Sua vida, que fora extremamente regrada e monótona havia ganhado algo diferente, algo que ele gostava, uma cor nova. Então sua rotina mudou, seus horários não eram mais fixos, os amigos não o encontravam mais em casa – Andréi Iefímitch estava o tempo todo no hospital conversando com Ivan Dmítritch.

O inevitável aconteceu: as pessoas julgaram que o médico havia enlouquecido e já deveria se aposentar. Por fim, de modo irônico, o médico, símbolo da ciência e da esperança, acaba internado no hospital que administrava. Uma fala do próprio Andréi Iefimitch nos ajuda a compreender a sua situação: 

“Quando a sociedade se isola dos criminosos, dos doentes psíquicos e da gente incômoda em geral, ela é inflexível. Só lhe resta o seguinte: acalmar-se com o pensamento de que sua permanência aqui é indispensável” 

O conto  é uma ótima oportunidade para discutir a história da Psiquiatria e suas instituições, bem como a relações políticas de saúde e doença.

Escute o podcast neste link :

https://anchor.fm/psicopatologia/episodes/A-enfermaria-n-6-ev1m39

Dica de filme : 

 Filme de 2009 do diretor russo : KAREN CHAKHNAZAROV

Comentários

Postagens mais visitadas