A doença como símbolo nas obras de Thomas Mann



O sofrimento e a doença nas obras de Thomas Mann parecem ter a peculiar função de limiar entre o mito e o devir. Isso porque a doença não é apenas a patologia individual, mas o sinal de revelação de condições subjetivas e sociais, das quais pode incorrer a catástrofe ou a redenção.

O próprio escritor em texto sobre a missão literária declara :

 "Aquilo que resulta da doença é mais importante e estimulante para a vida e sua evolução do que qualquer normalidade aprovada do ponto de vista médico. A verdade é que a vida nunca prescindiu da doença, e dificilmente haverá uma afirmação mais idiota do que “a doença só pode gerar coisas doentias”

A doença como uma aproximação da morte e a finitude das coisas, potencializa a vitalidade humana, a crise que a doença traz altera as expectativas e faz com que a pessoa que sofre reavalie as normativas da sociedade.

Este é o caso de vários dos seus personagens : 

  • Hanno Buddenbrook ,o jovem é afligido por infecções recorrentes e constantes, e uma grave dificuldade de cicatrização, fazendo com que ele não pudesse desfrutar integralmente de uma sociabilidade normal.
  •  Rosalie Von Tümmle, no conto A Enganada, que tem um um câncer em seu útero que se espalhou pelo seu corpo,  motivo do seu rejuvenescimento 
  • Hans Castorp, lembrando que teria sido a doença o que serviu como combustível da disposição de se afastar da  vida na planície e que descobre na tuberculose toda a complexidade da vida e uma força de interiorização pessoal e espiritual.
  • Gustav Von Aschenbach, um escritor com seus 50 anos que decide viajar para a cidade italiana, mais ou menos como uma forma de lidar com sua crise criativa e vemos com o surto de cólera as transformações e desinibições do personagem.
  • Adrian Leverkühn,que mesmo sendo advertido por Esmeralda, sofre com a sífilis e vai com o sofrimento dissolvendo cada vez mais seus vínculos com a ordem normativa. 
O próprio Mann no livro:  
"Doutor Fausto: a vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por um amigo" 
explica : 

"A doença, e em especial uma doença escandalosa, discreta, oculta, produz certa oposição crítica ao mundo, à vida mediana; deixa as pessoas revoltadas e irônicas, com relação à ordem burguesa, e faz com que suas vítimas procurem a proteção do espírito livre, de leituras, de pensamento" 

É importante recordar que no fim do século XIX até a primeira metade do século XX a sífilis tinha uma reputação sinistra de ser “criativa”, daí ser comumente associada à atividade intelectual intensa, febril. Assim como a maioria das doenças sexualmente transmitidas, ela era vista como a doença que atingia os que desprezavam as conseqüências dos seus atos e o que caracteriza o Fausto de Mann e é indissociável de sua genialidade é seu amoralismo existencial e estético 

Podemos pensar que esta crise, gerada pelo estado doentio, abre uma força de superação, revela outras perspectivas e uma ambiguidade entre a genialidade e a morbidez se apresenta:

"A evolução de Nietzsche não é outra coisa senão a história de uma desinibição e degeneração paralíticas - um movimento de ser levado além de uma normalidade altamente talentosa rumo às esferas gélidas e grotescas de um conhecimento mortal e de uma solidão moral, um grau terrível e criminoso de conhecimento para o qual esse homem delicado e bondoso, dependente de todo tipo de cuidados, não tinha sido nascido, mas para o qual, assim como Hamlet, fora convocado"   
Thomas Mann em O escritor e a sua missão

A doença é o que possibilita o encontro com o diabo. 

Este limiar que  para Walter Benjamin, teria relação com o verbo schwellen, que pode ser traduzido por inchar ou intumescer. Épocas de convulsão social, de uma fragilidade da fronteira entre o bem e o mal, de uma inflação da alma, tempos chamados por Thomas Mann de "endiabradamente alemães" 

Em carta enviada a Hermann Hesse, Thomas Mann esclarece o espírito de um tempo, presente na Alemanha no início da década de 30. 


"No verão passado um rapazinho de Königsberg me enviou um exemplar carbonizado da edição popular dos Buddenbrooks, porque eu dissera algo contra Hitler. Ele escreveu também (anonimamente) que tinha vontade de me obrigar pessoalmente a terminar eu mesmo a destruição do livro. Não fiz isso, mas guardei cuidadosamente os restos enegrecidos, para que um dia testemunhem o estado espiritual do povo alemão em 1932."

Em carta a Eric Voegelin, em 1938, o escritor fala de uma "Revolução do Nilismo"  deflagrada com o advento nazista na Alemanha. A doença aparece como um momento de sofrimento e um embate contra um estilhaçamento da alma, a luta consigo mesmo, uma oportunidade de individuação :

“É que, tornando-se mundo segundo o princípio da individuação, pela sua fragmentação na multiplicidade, a vontade esquece a unidade primitiva e, embora, não obstante todo o seu esmigalhamento, continue una, torna-se uma vontade que está milhões de vezes em luta consigo mesma, que se combate e se desconhece a si própria, que, em cada uma de suas manifestações, procura seu bem estar, seu ‘lugar ao sol’, a expensas de outra e, ainda mais, a expensas de todas as outras não cessando, pois, de morder a própria carne, como aquele habitante do Tártaro que avidamente devorava a si mesmo."   

Fragmento sobre o sentimento religioso” In: O Artista e a Sociedade, 

O personagem citado da mitologia é Erisictão, um rei ímpio e violento, que derruba as árvores de um bosque sagrado devotado à Deméter e é  punido pelo despertar de um apetite devorador, que nada é capaz de apaziguar. 



Símbolo do orgulho e consequentemente da humildade, por seu avesso. 

A crise é representada como um combate interior, que devora ou revigora, numa dialética da vontade de ser. Este embate da alma é expressado de forma rica e complexa nas obras de Thomas Mann, refletindo as sutilezas de um tempo conturbado.


Escute o podcast deste episódio

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Referências de leitura : 

MANN, T. A Gênese do Doutor Fausto: romance sobre um romance. São Paulo: Mandarim, 2001.

________. A Montanha Mágica. São Paulo: Saraiva, 2011.

_______ Confissões do Impostor Félix Krull. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 (b).

______ & HESSE, H. Correspondência entre amigos. Rio de Janeiro: Record, s/d.

_______ Doutor Fausto: a vida do compositor alemão Adrian Leverkühn narrada por um amigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

_______. Duas Novelas: A lei & A enganada. São Paulo: Mandarim, 2003. ________. El triunfo Final de la Democracia. Buenos Aires: Losada, 1938. ________. Essays. New York: Vintage Books, 1957.

________. Morte em Veneza. São Paulo: PubliFolha, 2003.

________ Tonio Kröger. São Paulo: Abril Cultural, 1971.


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