A consciência de Zeno

                                                  

Zeno Corsini é um neurótico, quer mas não consegue deixar de fumar. 

Procura um psicanalista que o aconselha a escrever sobre a sua vida. Ele mesmo reconhece que tem os melhores propósitos mas que estes :

"são bons demais para serem imperativos"

No processo da escrita Zeno descobre que não quer ficar curado, compara a neurose como um navio que continua saindo pro mar em busca de aventuras e sempre volta ao porto da sua mediocridade segura. Zeno fala sempre na primeira pessoa e mesmo quando fala dos outros seu discurso é autocentrado.

A realidade do mundo lá fora não o interessa e sua autobiografia é cheia de ambiguidades, ele quer acreditar na sua própria ficção. Em "A Questão da Análise Leiga", Freud diz que a terapia psicanalítica requer que o paciente tenha uma atitude diferente de uma pessoa que confessa : 

"De fato, a confissão participa na análise como forma de introdução. Mas está muito longe de coincidir com o centro da análise ou de explicar os seus efeitos. Na confissão , o pecador diz o que sabe enquanto na psicanálise o neurótico deve dizer mais do que isso. E ainda não foi provado que a confissão tenha desenvolvido o poder de eliminar os sintomas diretos da doença "

Zeno busca assumir a posição de analista de si mesmo, mas o processo autobiográfico não é capaz de um diálogo, não alcançando portanto as dúvidas necessárias sobre a veracidade do seu próprio discurso.

A psicopatologia da vida cotidiana aparece assim como um repertório de sinais que Italo Svevo mobiliza para criar um excesso de informação, ultrapassando os significados previstos e queridos pela consciência de Zeno.

O personagem é o caso extremo da pessoa que rejeita o diagnóstico e está convencida de que pode curar-se sozinha, mudando a própria definição de saúde por sua convicção.

"Eu estou curado ! Não só não quero fazer psicanálise como não preciso disso. E a minha saúde não vem só do fato de me sentir privilegiado no meio de tantos mártires. Não é a comparação que me faz sentir saudável . Eu sou saudável absolutamente" 

O modo como Zeno se relaciona com o propósito de parar de fumar é fundamental para o desenho da psicologia da personagem. Com a renovação da promessa a cada nova data, Zeno declara o fracasso da racionalização anterior com uma nova racionalização ainda mais frágil, exibindo ao mesmo tempo seu cérebro hipertrofiado e criativo e sua incapacidade de ação. Mais do que isso, a narração da personagem em busca do melhor momento para decretar o fim de seu vício dialoga com um tema central do romance, a teoria psicanalítica.

Ao apresentar ao analista uma série de reflexões disparatadas e acrobacias mentais que buscam nas datas, isto é, num elemento exterior as razões do sucesso ou do fracasso de seu propósito, o protagonista revela-se como alguém que não tem consciência de suas motivações ou, usando o termo de Freud, um supersticioso.

"O supersticioso tende a atribuir ao acaso externo um sentido que se manifestará em acontecimentos reais, e a ver no acaso um meio de expressão de algo que se oculta dele no mundo externo. [...] ele projeta para fora uma motivação que eu procuro dentro; [...] o oculto para ele corresponde ao que para mim é o inconsciente, e é comum a nós dois a compulsão a não encarar o acaso como acaso, mas a interpretá-lo. [...] Porque o supersticioso nada sabe da motivação de seus próprios atos casuais, e porque o fato dessa motivação pressiona pela obtenção de um lugar no campo de seu reconhecimento, ele se vê forçado a situá-la, por deslocamento, no mundo externo." (FREUD, 1987).

Por vezes, o comportamento do neurótico é algo que ele não consegue alterar. Freud diz que o paciente resiste à terapia porque tem o desejo de permanecer doente e porque este desejo se sobrepõe ao desejo de ficar curado.

Em "Sobre o início do tratamento", Freud avisa para os perigos de dar tarefas aos pacientes como prelúdio para os encontros terapêuticos, pois estes podem aumentar as resistências. 

Este é o caso do psicanalista do livro quando propõe a escrita autobiográfica, abrindo o romance com a explicação desta proposta : 

"Eu sou o doutor de quem se fala algumas vezes com palavras pouco lisonjeiras nesta história.  Quem percebe de psicanálise , sabe como interpretar a antipatia que o paciente me dedica. De psicanálise não falarei aqui porque aqui dentro já se fala o suficiente. Devo pedir desculpa por ter induzido o meu paciente a escrever a sua autobiografia; os estudiosos de psicanálise torcerão o nariz a tanta novidade. mas ele era velho e eu pensei que o seu passado pudesse reflorescer em tal revocação, que a autobiografia fosse um bom prelúdio à psicanálise. Ainda hoje a minha idéia me parece boa porque me deu resultados inesperados, que teriam sido maiores se o doente não tivesse rejeitado a cura furtando-me o fruto da minha longa e paciente análise destas memórias.

Publico-as por vingança e espero que ele fique aborrecido. Saiba, no entanto que estou disponível para dividir com ele os lautos ganhos que retirarei desta publicação, desde que ele recomece o tratamento.Parecia tão curioso de si ! Se ele soubesse como poderia surpreender-se com o comentário das muitas verdades e mentiras que aqui acumulou "

A chantagem como técnica é pura ficção, mas a obra acaba expondo os temas da Psicanálise pela primeira vez para a Itália. No último capítulo do livro, Zeno rejeita a conclusão do psicanalista e dá nota do seu repúdio pela idéia de que, em alguma altura da vida, desejou a mãe e sentiu necessidade de diminuir a força de seu pai.

A obra ao criar este clima de rivalidade entre Zeno e o doutor S ( uma brincadeira que remete ao Sigmund), nos mantém com bom humor numa constante análise da terapêutica psicanalítica, em suas condições para a efetividade do tratamento, as questões da resistência e da própria compreensão do conceito do que é Saúde.

 Escute o podcast no link : 

https://anchor.fm/psicopatologia/episodes/A-conscincia-de-Zeno-e138gsk





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