Flannery O'Connor e a simbologia da redenção

Flannery O'Connor nasceu no estado da Geórgia em 25 de março de 1925, região sul dos Estados Unidos. Perde seu pai aos quinze anos, vítima de lúpus eritematoso sistêmico e esta mesma doença auto-imune é a causa de sua morte em três de agosto de 1964, aos 39 anos de idade.
Escreveu dois romances, duas coleções de contos, cartas, conferências e artigos.
Uma crítica de Harvey Webster, ao romance "Sangue Sábio" de 1952 contaminou muito o enfoque da recepção de suas obras, sendo consideradas:
"um certo tipo de existencialismo nilista"


É preciso portanto mediar a leitura de seus textos através da perspectiva da escritora e de sua fé católica, entendida por ela como: 
 "um caminhar escuro e não uma solução teológica do mistério" (1)

As cartas de O'Connor são publicadas em 1979 num livro denominado : "The Habit of Being" onde são revelados os seus pensamentos sobre a arte de escrever e a sua compreensão teológica do mundo. Estas revelações servem de um testemunho mais adequado para a leitura de suas intenções.
Quando, por exemplo, foi questionada sobre a falta de propósito espiritual e de alegria nos seus personagens, a escritora respondeu :
"é necessário olha-los do ponto de vista da redenção. ....A redenção realizada por Cristo afirma, não pode ser tomada ao de leve, nem é facilmente transparecível na minha ficção "(1)

Nos contos de Flannery, vemos frequentemente personagens pobres afligidos no corpo e no espírito, com pouco sentido espiritual ou com visões distorcidas ou desesperançadas do bem. A escritora leva as cenas ao grotesco  e choca o leitor na utilização de cenas violentas, as quais justifica dizendo :

"aos duros de ouvido tu gritas e aos quase cegos desenhas grandes e alarmantes figuras " (1)

Este movimento interior que evidencia o mal em seus personagens puxa ao mesmo tempo para um cenário sobrenatural. O verdadeiro interesse de Flannery é através do grotesco gerar um contraste que permita ao leitor perceber as sutilezas da graça.

Convém lembrar a forte  presença religiosa em sua região, o chamado  "cinturão bíblico" e portanto um território cultural que permite a compreensão destas entrelinhas religiosas num mundo corrompido, que segundo a escritora :

só é possível por um ato de absoluto e irrevogável sacrifício, onde as amarras mundanas dos indivíduos tem de ser removidas à força. Em Cristo e na sua cruz, reside o momento decisivo de toda experiência humana"

É esta compreensão o alicerce de toda escrita de Flannery O'Connor e sem esta chave compreensiva você corre o risco de ser como o professor que em 1961 escreveu pedindo que ela lhe explicasse o conto "É difícil encontrar um homem bom" que seus alunos haviam estudado sem chegar a uma interpretação aceitável. O professor de inglês relata :

"Discutimos exaustivamente várias interpretações possíveis, e nenhuma nos satisfaz inteiramente. Achamos que o aparecimento do desajustado não é "real" como os incidentes da primeira parte da história. Achamos que Bailey imagina o aparecimento do Desajustado. No entanto mesmo nos esforçando muito, não conseguimos descobrir quando a realidade cede lugar a ilusão ou ao devaneio. O acidente é real, ou só acontece no sonho de Bailey ? Por favor, acredite não estamos buscando uma solução fácil para o nosso problema. Analisamos atentamente sua história, que muito admiramos e estamos convencidos de que não deixamos escapar nenhum ponto importante que deveríamos captar."



A escritora que era muito disposta a responder aos seus leitores,diz estar em estado de choque com a leitura da carta do professor. Ela explica que o conto não é um caso de investigação para o qual qualquer resposta é crível desde que seja aceitável e que não há teoria que supra a falta de sensibilidade.

Esclarece suas intenções literárias em dois parágrafos :

"Há uma mudança de tensão entre a primeira e a segunda parte da história, quando o Desajustado entra em cena, mas isto não implica uma redução da realidade. Evidentemente, essa história não é realista, não retrata o cotidiano das pessoas da Georgia. É estilizada e suas convenções são engraçadas, embora seu significado seja sério. Bailey só tem importância como filho da Avó e motorista do carro. A Avó quem primeiro reconhece o Desajustado e quem mais se preocupa com ele. A história é uma espécie de duelo entre a Avó e suas crenças superficiais e o envolvimento mais profundo do Desajustado com a ação de Cristo que desequilibra o mundo, na opinião dele" (2)

Um duelo simbólico que ecoa ou não em sua alma, mas que é o horizonte da escritora que explica :

"Para mim o nascimento virginal, a Encarnação e a ressurreição são as verdadeiras leis da carne e da matéria. A morte, a deterioração, e a destruição são a suspensão dessas leis. Sempre me surpreende a ênfase que a Igreja coloca no corpo. Não diz que ressuscitará a alma, mas o corpo, glorificado. Sempre pensei que a pureza era a mais misteriosa das virtudes, mas parece- me que a pureza nunca entrou na consciência humana se não pela esperança da ressurreição corporal, que unirá carne e espírito em harmonia, como estavam em Cristo A ressurreição de Cristo parece o cume da lei e da natureza" (3)

Escute o podcast :

https://anchor.fm/psicopatologia/episodes/Flannery-OConnor-e-a-simbologia-da-redeno-e152ut6/a-a67kuao 


                                                      (2) Cartas extraordinárias                                                          

ou
  (3) El Hábito de Ser. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2004

Um biografia espiritual : 



(1) Trechos retirados do livro : Mystery & Manners. London: Faber & Faber, 2014.

                  

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