A circunstância invertebrada de Gregor Samsa

" As coisas que nos assustam são em maior número do que as que efetivamente nos fazem mal, e afligimo-nos mais pelas aparência do que pelos fatos reais"
Sêneca 

Crises acontecem à todo momento e em todas as famílias. 
A vida que parece seguir sua rotina, mesmo que insossa, pode ter uma reviravolta que desafia 
nossa generosidade e criatividade.
A história de Gregor Samsa começa com uma insatisfação declamada por muitos :
"Oh, Deus" pensou ele, "que profissão extenuante que fui escolher! Entra dia, sai dia, e eu sempre de viagem (...) Contatos humanos sempre cambiantes, que nunca serão duradouros e jamais afetuoso. Que o diabo leve tudo isso !"
Se eu não me contivesse por causa de meus pais, já teria pedido as contas há tempo : teria me apresentado ao chefe e lhe exposto direitinho o que penso, do fundo do coração. Ele teria de cair da escrivaninha!
Bem a esperança ainda não está de todo perdida; quando eu tiver juntado o dinheiro a fim de quitar a dívida de meus pais com ele - acho que isso demorará ainda uns cinco anos ou seis anos, eu encaminho a coisa sem falta"


Mas o confronto com uma nova condição inesperada, coloca Gregor em uma nova condição, 
num primeiro momento somente física :
“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.”
"...teria necessitado fazer uso dos braços e das pernas, a fim de se levantar ao invés delas, no entanto possuía apenas várias perninhas  (...) que ele, além de tudo, não conseguia dominar. 
E por um momentinho permaneceu deitado quieto, respirando bem fraco, como se esperasse do silêncio total a volta das circunstâncias reais e naturais "
Como é que uma coisa dessas ataca assim um homem !

O primeiro confronto com esta nova realidade é de perplexidade e negação, ele se atrapalha com as tarefas mais simples. Mas logo tem de enfrentar a família e vemos então que uma incomunicabilidade se instaura, percebemos o desespero e a hostilidade reinar no ambiente.
(...) apesar de sua atual figura, tristonha e repulsiva, era um membro da família que não devia ser tratado como inimigo, mas diante do qual o mandamento do dever familiar impunha engolir a aversão e suportar, nada mais que suportar. E mesmo que Gregor agora tivesse perdido, provavelmente para sempre, alguns de seus movimentos por causa da ferida, e de momento se comportasse como um velho inválido (...)

Esta família em sua crise, traz um comportamento muito comum em casos de pacientes com doenças graves quer sejam psicológicas ou não. É penoso o sofrimento emocional vivido no processo de enfrentamento das restrições, que uma pessoa adoecida, por vezes causa aos familiares.

"Quem tinha tempo de se preocupar com Gregor, mais do que o estritamente necessário, nessa família sobrecarregada e esgotada ? "

Como se preparar para circunstâncias invertebradas, metamorfoses que rompem com nossos paradigmas e desestabilizam nossas percepções ?


Existem muitas leituras possíveis de uma obra poética, a obra de Kafka instiga por seu inusitado e ao mesmo tempo possibilita a reflexão sobre os nossos comportamentos em situações extremas.
“Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela não salvo a mim”
estamos implicados na realidade, como dizia o filósofo espanhol José Ortega y Gasset, em seu primeiro livro, de 1914, Meditaciones del Quijote.
  Se não compreendo a minha circunstância, e portanto,  o que acontece com meus semelhantes, não poderei compreender a mim mesmo. 
O horror, o desprezo, o nojo, o medo são formas de alienação, de não dar atenção, de não escutar e portanto de não saber o que passa fora do meu horizonte de consciência.
Circunstâncias invertebradas são aquelas que quebram com nossos parâmetros de normalidade, que nos fazem perder a hierarquia e as rotinas que condicionam nossa vida.
Circunstâncias que geram insegurança por adentrar um universo de problemas que desconhecemos.
Os insetos por suscitarem em nós,  reações de desconforto ou nojo, podem ser um excelente símbolo dos enfrentamentos necessários, da coragem para este novo.
Existe um poema de Manoel Bandeira que apresenta esta mesma perplexidade e temor:

O bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.

 Existe uma cena na história que apresenta Gregor emocionado pela música, um momento de contraponto e dúvida, de sensibilidade :
"Poderia ser realmente um animal, quando a música tinha sobre si tal efeito?"
Quando enfrentarmos nosso medos, percebemos possibilidades que estão ali,
 naquelas circunstâncias que parecem ultrajantes, medíocres, momentos que guardam outras fontes 
de aprendizagem e humildade.

Escute o podcast deste episódio, no link abaixo :
A circunstância invertebrada de Gregor Samsa


  

Comentários

  1. Oi Adriana!

    Muito legal o texto! Descobri seu podcast recentemente e tenho acompanhado ele com grande interesse. Também sou podcaster, produzo o Literatura Viral, em que discuto literatura e epidemias. A proposta é bastante parecida com a sua! Eu estou pensando em fazer um episódio sobre loucura daqui a mês e meio (sobre O Diário de um Louco do Lu Xun ou a obra de mesmo título do Gógol). Você não gostaria de participar? O que tenho em mente tem tudo a ver com o a sua proposta, acho que seria enriquecedor pra todo mundo :) Desculpe escrever nos comentários, não consegui encontrar você nas mídias. Meus contatos são aureolgneto@gmail.com, @mundoaureo e @literatura.viral no Insta ou Aureo Lustosa Guerios no face. Um abraço!

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