A solidão desértica de John Marche

"Solidão é sentir em si a presença de uma potência que parece incapaz de exercer-se,
mas que assim que começa a fazê-lo, me obriga a me realizar multiplicando minhas relações
comigo mesmo e com todos os seres"
Louis Lavelle - O mal e o sofrimento 

A fera na selva é uma obra, que  toca numa ferida em carne viva que todos vivemos; a necessidade de comungar nossa vida e o medo da indiferença. Uma oferta amorosa, uma exigência ardente de encontro que ao não se realizar nos conturba a alma.


Certo dia em um passeio a uma mansão aberta a visitações, John Marche se reencontra com May Bartram, após dez anos sem notícias um do outro. Ela então retoma a confidência feita, por ele, durante o último encontro e a lembrança deste segredo revelado. Ela pergunta se ele ainda tem este sentimento, e a cumplicidade do segredo, refaz o vínculo entre eles.
Ela relembra que ele : 
"Contou que sempre teve, desde os primeiros tempos, como a coisa mais profunda dentro de você, a sensação de estar sendo poupado para algo raro e estranho, talvez prodigioso e terrível, que mais cedo ou mais tarde acabaria acontecendo. 
Que tinha este pressentimento, esta convicção, e que isto seria capaz de esmagá-lo."

Esta expectativa pelo extraordinário, faz com que John, não partilhe a presença das pessoas no seu cotidiano, e consequentemente não se envolva afetivamente com ninguém.
Sendo incapaz de atravessar seus medos e na expectativa de algo grandioso, John resiste as bondades de May e mesmo depois de vários encontros ela adoece; ele é sempre temeroso em retornar, seu olhar penetrante e amoroso.
A possibilidade de encontro fica abalada com a iminência da morte e o faz reflexivo:

"Tudo o que os dois haviam pensado, desde o princípio, se precipitou sobre ele; o passado parecia ter-se reduzido a mera especulação estéril. Era disto, na verdade, que o lugar acabava de lhe parecer tão cheio – a simplificação de tudo, exceto o estado de expectativa. Este permanecia, somente porque parecia pender no vazio que o circundava. 
Mesmo o seu medo inicial, se medo fosse, havia se perdido no deserto."

A morte de May Bartram , gravada na laje de pedra faz finalmente,  para John a consciência
do seu egoísmo e  isolamento e provoca o arrependimento :

"A salvação teria sido amá-la; assim, só assim ele teria vivido.
 Ela vivera – quem agora poderia dizer com que paixão? – pois o havia amado por ele próprio; 
ao passo que ele jamais havia pensado nela 
(ah, como isso agora era tão claro a seus olhos!) senão na frieza do egoísmo 
e à luz do proveito próprio."

 Havia visto fora de sua vida, não aprendido por dentro.... 
Vemos então, um homem que foi amado, mas que não se abriu a experiência do amor
May é a docilidade em pessoa, e como ela mesma diz a porta sempre esteve aberta,
a possibilidade de um encontro que ela manteve sempre possível.
Vemos nesta cena esta vontade expressa de May:

"Ela sacudiu a cabeça mais uma vez: – Seja qual for o caso, esta não é a verdade. 
Qualquer que seja a realidade, é uma realidade. A porta não está fechada. 
A porta está aberta – disse May Bartram. 
– Então é alguma coisa que virá? 
Ela tornou a esperar, sempre com os olhos suaves e frios voltados para ele:
 – Nunca é muito tarde. 
Com seus passos leves, ela tinha diminuído a distância entre eles, e ali ficou um minuto, mais próxima, bem perto dele, como ainda impregnada do que não fora dito. Seu movimento poderia ter sido o de alguma ênfase sutil do que estava ao mesmo tempo hesitando e decidindo dizer. Ele estivera de pé junto ao aparador da lareira, apagada e quase sem adornos, além de um velho e precioso relojinho francês e duas pequenas peças de porcelana rosada Dresden; a mão dela segurou com força no aparador enquanto o deixava à espera, um pouco para buscar apoio e incentivo."

O fato é que John Marche mesmo vivendo angústias e dúvidas, não consegue sair de si e corresponder a bonícia de May, como ele mesmo diz :  
Ele é "o homem, aquele a quem nada neste mundo havia acontecido."

Ser uma pessoa implica em assumir a sua liberdade e um esforço para realizar sua vida.
A realidade sempre tem um caráter de alteridade, precisamos do outro para ser.
Como diz Louis Lavelle :
"Não existe pessoa que já tenha nascido como deve ser, e tampouco existe pessoa que algum dia se tenha tornado no que deve ser, isto é que tenha chegado a sê-lo. Mas ninguém progride de outro modo que não seja saindo de si, isto é, triunfando sobre o apego a si mesmo que o separa de outros seres. E todos, ao se evadirem de si mesmos, quebram igualmente os muros de sua prisão; encontram, assim a imensidão do céu livre sob o qual se comunicam, 
Quem sempre busca acumular novos bens e sempre tem medo de perde-los mede a cada instante sua própria miséria. Os bens espirituais, no entanto não podem ser confiscados. Ao contrário, quem se despoja de todas as posses particulares descobre em torno de si uma abundância infinita. 
Dispõe de toda a riqueza do mundo, cuja fruição não para de se ampliar para ele quando faz com que seja compartilhada"

Ouça o podcast deste episódio no link abaixo :
A solidão desértica de John Marche


Trechos tirados do livro :






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