Assumir a injustiça que todos cometemos : a meditação de Maurizius


Na história, "O processo Maurizius", vivemos a constante tentação de escolher 
um dos lados dos protagonistas, o pai ou o filho, o sistema judiciário ou a defesa dos ideais de justiça.


Mas será que é este mesmo o centro do romance ?
O "pólemos" (luta) entre Etzel Andergast e o barão Andergast necessita para sua própria estrutura, um ponto de apoio, um chão que permita o conflito e a dissonância.
Este pomo da discórdia é o destino de Maurizius e é nele que encontramos a fonte de verdadeiro entendimento e expiação deste ciclo vingativo e simplificado da dualidade.
Um verdadeiro interesse surge para quem tem inter-esse, ou seja para quem está presente no  meio das coisas e vive com elas.
Precisamos entender não as ideologias e sistemas, sempre falhos, mas as pessoas e suas fragilidades. É portanto escutando o personagem que dá título a obra - Maurizius - que entendemos
 a complexidade da situação e o espírito da época.
A desordem na alma de todos é o que impede a prudência no julgamento.
Na conversa dentro da prisão do detento 357 com o barão Andergast, entendemos mais
 profundamente o problema :

"Maurizius levantou a tampa interna do fogareiro, mergulhou os olhos no buraco negro e tampou novamente:  " Sim ", recomeçou "foi uma operação capaz de triturar corações, cada um era ao mesmo tempo torturado e instrumento de tortura. Dois ou três agiam sempre de comum acordo para esmagar o terceiro, ou o quarto. Um mecanismo admirável, palavra de honra "

Relações que dilaceram, um cotidiano medíocre que estreita
o horizonte de consciência  e confina o destino das pessoas :

" Durante noites e noites, errava pela casa como uma alma penada e não compreendia, oh! não queria compreender que eu, exatamente como ela, era um pobre desgraçado, um miserável a quem Deus dizia: "Vamos eis o teu destino, engole-o !" 
Veio enfim o dia em que pensei : "Seria melhor, mulher que você não existisse, que desaparecesse deste miserável lugar" .Afirmo -lhe senhor procurador, que riscá-la do número dos mortais, me pareceu uma boa ação, porque tal existência é um suplício para quem a vive, pensei, e um fardo, um suplício para aqueles que tem de viver em sua companhia. 
Então, não haverá saída possível, não se terá o direito de reconquistar a paz ? 
É evidente que, tendo tido esse desejo criminoso, não estou isento de culpa. Não. Não o creia ....não estou isento de culpa e, muito menos inocente, o que não é absolutamente a mesma coisa. 
Chega um momento em que o assassínio já está consumado em espírito. 
O que acontece em seguida, é como a expulsão do feto durante o trabalho de parto. 
Mas isso é fazer um julgamento sacrílego, eu sei, eu sei. No auge da minha aflição eu disse a Ana :
"Se as coisas chegarem ao último extremo matarei você e, em seguida me suicidarei; 
então todos nós teremos paz "

A morte como saída para uma tensão que parece insuportável , assassinato e suicídio banalizados é este o verdadeiro tema do livro. 
A última cena é da tentativa de suicídio de Etzel, frente a notícia de que Maurizius aceitou o indulto. 
Sua indignação e desespero apresentam a visão do homem arruinado, que era agora o barão.
"Um espanto hesitante se desenhou em suas feições, como se a imagem habitual que sempre o dominara se tivesse transformado em uma outra, colocada de certo modo um pouco mais baixa e sobre a qual era obrigado mesmo a se inclinar para reconhecê-la. Não era mais o ser enigmático , detentor e guardião de segredos, não era mais o regente de misteriosos destinos, não era mais Trismegisto, mas um pobre homem culpado , quebrado. "

Não era mais uma autoridade, não era mais seu pai. 
A decadência deste estatuto simbólico é a revelação de uma crise de valores muito mais ampla, 
O fim de um ethos, como diz Eric Voegelin em suas reflexões autobiográficas.

"Recuperar a realidade, resgatando-a da deformação a que foi submetida, exige bastante trabalho. 
É preciso reconstruir as categorias fundamentais da existência, da experiência, da consciência e da realidade. É preciso, ao mesmo tempo, investigar a técnica e a estrutura das deformações que se acumulam no dia-a-dia. E é preciso desenvolver conceitos que permitam agrupar em categorias a deformação existencial e sua expressão simbólica. "

Existe nas doenças espirituais reflexos das crises vividas na sociedade em certa época. 
A consciência humana é a luz que guia o homem no drama da sua vida, mas é uma luz difusa  e portanto devemos atentar de que uma intenção moralizadora não pode justificar 
a imoralidade de uma ação.


“Totalitarismo não é tanto a solidificação de uma teoria econômica,
 biológica ou social, mas muito mais a manifestação de uma atração pela morte. 
Mas o segredo dos que não podem enquadrar-se no abismo totalitário é simples:
Eles amam a vida, não a morte "

Nicolas.Steinhardt,  Diário da Felicidade  


O amor à morte, a morbidez e seus estilhaços que ferem todas as relações, que esterilizam as potências da vida.
A humildade de reconhecer que fazemos parte desta injustiça com a própria vida, é esta a meditação de Maurizius e é esta humildade o que permite o início de uma vontade voltada para a VIDA.


Escute o podcast deste episódio, neste link :
Assumir-a-injustia-que-todos-cometemos--A-meditao-de-Maurizius


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