A morte nos coloca na verdade da nossa condição humana e nos revela a inteligibilidade última da nossa existência, porque arruina todos os nossos projetos, revelando o que
é essencial e necessário.
Ivan Ilitch tem três meses de sofrimento e agonia, vive neste encontro consigo mesmo a oportunidade de rememorar e reavaliar a sua vida.
O problema tem início com um acidente banal, ao subir uma escada para arrumar a cortina, ele falseia o pé, cai e lesiona a região renal, o que lhe causa dores intensas e progressivas.
"A dor não diminuía, mas Ivan Ilitch fazia grandes esforços para acreditar que estava melhor. E até conseguia convencer-se disso, desde que nada acontecesse que o deixasse perturbado. Mas bastava que houvesse o menor aborrecimento com a esposa, ou sofresse qualquer contrariedade no Tribunal ou lhe caíssem cartas ruins no jogo e ele tornava-se de uma hora para a outra extremamente sensível à sua doença. Em outra época ele teria suportado esses contratempos, esperando corrigir em seguida o que estava errado, superá-los, sair-se bem de todo. Mas agora qualquer revés aborrecia-o e fazia-o afundar no desespero"
Ilitch tem quarenta e cinco anos, é um juiz da Rússia czarista do século XIX, vive uma vida desprovida de relações verdadeiras, inclusive as familiares.
A doença causa este afastamento do seu cotidiano, o que permite a tomada de consciência
da sua miséria afetiva .
"Eles ceiam e a festa termina. Ivan Ilitch fica sozinho, consciente de que sua vida está envenenada e de que está envenenando a dos outros e de que este veneno não está perdendo sua força mas, ao contrário entranhando-se cada vez mais dentro do seu ser.
É com esta certeza, mais a dor física e mais o terror que ele vai pra cama, para na maioria das vezes ficar ali acordado, sentindo dor a maior parte da noite.......
E assim ele tinha de viver, a beira do precipício sozinho, sem uma alma
que o entendesse e dele tivesse compaixão "
O desespero de saber que está morrendo é ao mesmo tempo a abertura de uma nova sensibilidade espiritual, apresentada na delicadeza do copeiro, Gerassim chamado para cuidar de um Ivan que já não consegue realizar sozinho suas necessidades básicas.
"O sofrimento maior de Ivan Ilitch provinha da mentira, aquela mentira por algum motivo aceita por todos, no sentido que ele estava apenas doente e não moribundo, e que só devia ficar tranquilo e tratar-se, para que sucedesse algo muito bom. Mas ele sabia que por, mais coisas que fizessem, nada resultaria disso, além de sofrimentos, ainda mais penosos e morte. E esta mentira atormentava -o, atormentava-o o fato de que não quisessem confessar aquilo que todos sabiam, ele mesmo inclusive, mas procurassem mentir perante ele sobre a sua terrível situação, e obrigassem-no a tomar parte naquela mentira (...) via que ninguém haveria de compadecer-se dele, porque ninguém queria sequer compreender a situação. Gerassim era o único a compreendê-lo e a compadecer-se dele "
O aroma de terra do camponês, sua camisa limpa de algodão, sua gentileza e sinceridade despertam em Ivan uma consciência espiritual, e com elas surgem as perguntas que realmente importam. É nesta conversa com a própria morte, que Ivan chega a conclusão de que não viveu como deveria e se questiona :
"Não. Estava tudo errado" disse para si mesmo.
"Mas não importa !Ele podia agora fazer a coisa certa,
Mas o que é a coisa certa ?, indagou-se e ficou calado sem resposta"
Na apresentação de O pensamento vivo de Tolstói, Stefan Zweig nos traz as seis questões que
estavam na base das reflexões de Tolstói e que transmitem tanto uma inquietação social
quanto um misticismo do autor: Existe uma página maravilhosa escrita nesse tempo por Tolstói, onde
consignou as seis ‘questões sobre o desconhecido’, que ele deve responder:
a) Por que vivemos?
b) Qual é a causa da minha e de todas as outras existências?
c) Qual é o fim da minha e de todas as outras existências?
d) Que significa essa distinção entre o bem e o mal que encontro em mim e
por que ela existe?
e) Como devo viver?
f) O que é a morte e como me salvar?
As respostas estão na nossa consciência, neste recanto íntimo da nossa alma e vemos na literatura este encontro com nossas perguntas fundamentais. Ou como disse o escritor português, Lobo Antunes :
"A morte de Ivan Ilitch é um livro em que todas as páginas são espelhos "
A reflexão é somente sua, uma resposta íntima.
Boa leitura !
Para ouvir o áudio deste episódio, siga o link abaixo : https://anchor.fm/psicopatologia/episodes/Ivan Ilitch
Referência de leitura complementar :
ZWEIG, Stefan. O pensamento vivo de Tolstói. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1961.
(Coleção Biblioteca do Pensamento Vivo).
Trechos utilizados deste livro:
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