O martírio de Nastácia Fillípovna

"Em qualquer romance de Dostoiévski, encontraremos os mesmos princípios de construção do todo, na base do contraste entre a queda do homem e a sua beleza espiritual. Em O idiota, apresenta-se a biografia sem esperança de uma rica natureza feminina Nastácia Fillípovna e desvenda-se o triste destino de um sonhador sublime, em meio ao rebotalho moral da sociedade: capitalistas donos de terras, generais agiotas,  palhaços obscenos e mendigos impacientes. Nada pode salvar duas almas puras e levá-las para fora daquele círculo encantado de vícios e crimes." (1)

Quando Nastácia Fillipovna era criança sua mãe morre e seu pai fica louco de tristeza e morre logo depois. Ela então vai ser criada por Tótski um burguês, que aos dezesseis anos torna à jovem como sua amante. Nastácia desenvolve uma personalidade voluntariosa e irascível, a ponto de seguir seu abusador até São Petesburgo e instalar-se lá para infundir-lhe pavor. 
Ela nutria uma aversão e um profundo desprezo por Tótski, a ponto de lhe causar náusea, por isso, estava disposta a qualquer coisa para ultrajá-lo, inclusive, arruinar-se a si mesma. 
Na sociedade, é vista como louca e excêntrica, porém vamos percebendo, ao longo do romance, que suas ações impulsivas e radicais são apenas resultado de uma autoestima dilacerada, um grito surdo de ódio de uma mulher que se considera indigna perante as outras, culpada de ser quem é. Esse retrato profundo e pouco óbvio de uma jovem do século XIX nos é dado através dos olhos do príncipe Míchkin, que enxerga uma dimensão de
 Nastácia Fillípovna que ninguém mais vê.

– E a senhora não se envergonha! Porventura é esse tipo que há pouco fez parecer? E pode uma coisa dessas? – gritou súbito o príncipe com um profundo e afetuoso reproche.
Nastácia Fillípovna ficou surpresa, deu um risinho, mas como se escondesse alguma coisa por trás do sorriso, olhou para Gânia meio perturbada, e saiu do salão. Contudo, antes de alcançar a antessala, voltou subitamente, chegou-se rápido a Nina Alieksándrovna, segurou-lhe a mão e levou-a aos lábios.

– Eu realmente não sou esse tipo, ele adivinhou – sussurrou em tom rápido, caloroso, repentinamente inflamada e ruborizada e, dando meia-volta, saiu desta vez tão rápido que ninguém conseguiu entender por que havia voltado. 

Em conversa franca com Aglaia, a moça de boa família por quem ele nutre 
grande ternura, O príncipe afirma:

Aquela mulher infeliz está profundamente convencida de que é o ser mais decaído, o ser mais depravado de todos na face da terra. Oh, não a difame, não atire pedra. Ela já se martirizou demais com a consciência de sua desonra imerecida! E que culpa ela tem, meu Deus? Oh, a todo instante ela grita, tomada de fúria, que não reconhece a sua culpa, que é uma vítima das pessoas, vítima de um depravado e canalha; entretanto, seja lá o que ela lhe diga, fique sabendo que ela é a primeira a não acreditar em si mesma e, de plena consciência, acredita, ao contrário, que ela… que ela mesma é culpada.Quando eu tentei dissipar essas trevas ela chegou a sofrer tanto que meu coração nunca estará sarado enquanto eu me lembrar daquele tempo terrível. É como se me tivessem traspassado o coração para sempre. Ela fugiu de mim sabe por quê? Unicamente para demonstrar apenas para mim mesmo que é vil (...) Às vezes eu a levava a tal ponto que ela parecia tornar a ver uma luz ao seu redor; todavia tornava a indignar-se imediatamente, e chegava a tal ponto que já me acusava amargamente por eu me colocar muito alto acima dela (...) e por fim me acusou francamente de ter feito a proposta de casamento, que ela não exige que ninguém tenha compaixão" presunçosa dela, nem que a ajude” 

Vemos aqui o caráter depressivo, de perda do sentido da vida e do mundo como acessível.       A ruminação de idéias negativas e a culpa, fabrica um mapa mental que a impede de viver outra vida, aprisionando todas as suas potências num passado absoluto. 

No fim de sua carta, Nastáscia  descreve a imagem de Cristo para Aglaia:

(...) Voltei para casa e fiquei imaginando um quadro. Os pintores pintam Cristo sempre com base nas lendas do Evangelho; eu o pintaria de modo diferente: eu o pintaria sozinho – às vezes seus discípulos certamente o deixavam só. Eu deixaria com ele apenas uma criancinha pequena. A criancinha brincaria ao lado dele; talvez lhe contasse alguma coisa em sua linguagem de criança, Cristo a escutaria, mas agora caía em meditação; sua mão permaneceria esquecida, involuntariamente na cabeça luminosa da criança. Ele olharia ao longe, para o horizonte; um pensamento, grande como o mundo todo, repousaria em seu olhar; o rosto seria triste. (...) O sol estaria se pondo... Eis o meu quadro! (...) Dentro em breve morrerei 

 Em outra carta, ela escreve:

"Ouvi dizer que sua irmã Adelaida disse, a respeito do meu retrato, que com uma beleza como essa pode-se virar o mundo de pernas para o ar. Mas eu renunciei ao mundo; a senhora achará engraçado ouvir isso de mim ao me ver metida em rendas e brilhantes, acompanhada de beberrões e patifes? Não leve isso em conta, eu quase já não existo, e o sei; Deus sabe que em vez de mim ele vive em mim (...) eu sei que me ama a tal ponto [Rogójin] que já não pode deixar de me odiar. (...) Eu o mataria por medo... Mas ele vai me matar antes..."

Nastácia padece no sentido psicopatológico, de uma maneira passiva, sem reagir, uma apatia psíquica que perfaz uma espécie de profecia auto-realizada e trágica. Ela ama mais a sua vergonha e sua culpa do que o perdão que o Príncipe Míchkin pode lhe dar, e busca na faca de Rogójin a justificação final de seu desprezo para com os outros e si própria 

Escute o áudio deste podcast no link abaixo: 

https://anchor.fm/psicopatologia/episodes/O martírio de Nastácia Fillipovna

(1) GROSSMAN, Leonid. Dostoiévski artista. Trad. de Boris Schnaiderman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 

Série em capítulos do Romance na Rússia:


Comentários

Postagens mais visitadas