O martírio de Nastácia Fillípovna
"Em qualquer romance de Dostoiévski, encontraremos os mesmos princípios de construção do todo, na base do contraste entre a queda do homem e a sua beleza espiritual. Em O idiota, apresenta-se a biografia sem esperança de uma rica natureza feminina Nastácia Fillípovna e desvenda-se o triste destino de um sonhador sublime, em meio ao rebotalho moral da sociedade: capitalistas donos de terras, generais agiotas, palhaços obscenos e mendigos impacientes. Nada pode salvar duas almas puras e levá-las para fora daquele círculo encantado de vícios e crimes." (1)
– E a senhora não se envergonha! Porventura é esse tipo que há pouco fez
parecer? E pode uma coisa dessas? – gritou súbito o príncipe com um profundo e
afetuoso reproche.
Nastácia Fillípovna ficou surpresa, deu um risinho, mas como se escondesse
alguma coisa por trás do sorriso, olhou para Gânia meio perturbada, e saiu do
salão. Contudo, antes de alcançar a antessala, voltou subitamente, chegou-se
rápido a Nina Alieksándrovna, segurou-lhe a mão e levou-a aos lábios.
– Eu realmente não sou esse tipo, ele adivinhou – sussurrou em tom rápido, caloroso, repentinamente inflamada e ruborizada e, dando meia-volta, saiu desta vez tão rápido que ninguém conseguiu entender por que havia voltado.
“Aquela mulher infeliz está profundamente convencida de que é o ser mais decaído, o ser mais depravado de todos na face da terra. Oh, não a difame, não atire pedra. Ela já se martirizou demais com a consciência de sua desonra imerecida! E que culpa ela tem, meu Deus? Oh, a todo instante ela grita, tomada de fúria, que não reconhece a sua culpa, que é uma vítima das pessoas, vítima de um depravado e canalha; entretanto, seja lá o que ela lhe diga, fique sabendo que ela é a primeira a não acreditar em si mesma e, de plena consciência, acredita, ao contrário, que ela… que ela mesma é culpada.Quando eu tentei dissipar essas trevas ela chegou a sofrer tanto que meu coração nunca estará sarado enquanto eu me lembrar daquele tempo terrível. É como se me tivessem traspassado o coração para sempre. Ela fugiu de mim sabe por quê? Unicamente para demonstrar apenas para mim mesmo que é vil (...) Às vezes eu a levava a tal ponto que ela parecia tornar a ver uma luz ao seu redor; todavia tornava a indignar-se imediatamente, e chegava a tal ponto que já me acusava amargamente por eu me colocar muito alto acima dela (...) e por fim me acusou francamente de ter feito a proposta de casamento, que ela não exige que ninguém tenha compaixão" presunçosa dela, nem que a ajude”
Vemos aqui o caráter depressivo, de perda do sentido da vida e do mundo como acessível. A ruminação de idéias negativas e a culpa, fabrica um mapa mental que a impede de viver outra vida, aprisionando todas as suas potências num passado absoluto.
No fim de sua carta, Nastáscia descreve a imagem de Cristo para Aglaia:
(...) Voltei para casa e fiquei imaginando um quadro. Os pintores pintam Cristo sempre com base nas lendas do Evangelho; eu o pintaria de modo diferente: eu o pintaria sozinho – às vezes seus discípulos certamente o deixavam só. Eu deixaria com ele apenas uma criancinha pequena. A criancinha brincaria ao lado dele; talvez lhe contasse alguma coisa em sua linguagem de criança, Cristo a escutaria, mas agora caía em meditação; sua mão permaneceria esquecida, involuntariamente na cabeça luminosa da criança. Ele olharia ao longe, para o horizonte; um pensamento, grande como o mundo todo, repousaria em seu olhar; o rosto seria triste. (...) O sol estaria se pondo... Eis o meu quadro! (...) Dentro em breve morrerei
Em outra carta, ela escreve:
"Ouvi dizer que sua irmã Adelaida disse, a respeito do meu retrato, que com uma beleza como essa pode-se virar o mundo de pernas para o ar. Mas eu renunciei ao mundo; a senhora achará engraçado ouvir isso de mim ao me ver metida em rendas e brilhantes, acompanhada de beberrões e patifes? Não leve isso em conta, eu quase já não existo, e o sei; Deus sabe que em vez de mim ele vive em mim (...) eu sei que me ama a tal ponto [Rogójin] que já não pode deixar de me odiar. (...) Eu o mataria por medo... Mas ele vai me matar antes..."
Nastácia padece no sentido psicopatológico, de uma maneira passiva, sem reagir, uma apatia psíquica que perfaz uma espécie de profecia auto-realizada e trágica. Ela ama mais a sua vergonha e sua culpa do que o perdão que o Príncipe Míchkin pode lhe dar, e busca na faca de Rogójin a justificação final de seu desprezo para com os outros e si própria
Escute o áudio deste podcast no link abaixo:
https://anchor.fm/psicopatologia/episodes/O martírio de Nastácia Fillipovna
(1) GROSSMAN, Leonid. Dostoiévski artista. Trad. de Boris Schnaiderman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira
Série em capítulos do Romance na Rússia:
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