O desespero de Narciso


A história de Narciso, morto ao contemplar sua própria imagem, fascinado por sua própria beleza ao ponto de se afogar no lago, suscitou inúmeras interpretações.
 A versão ovidiana é de todas a mais extensa que conhecemos do mito de Narciso. Além de ser mais descritivo e dar maior ênfase à parte psicológica dos sentimentos, tanto de Narciso como de Eco, a versão de Ovídio apresenta episódios que não encontramos em mais nenhuma das versões que se conservaram: começa com o relato sobre o oráculo de Tirésias no momento do nascimento de Narciso e continua com a história de Eco, ninfa destinada a repetir as últimas palavras do seu interlocutor. 
A particularidade da sua voz é um castigo da deusa Hera anterior à paixão da ninfa pelo belo rapaz. Eco, apesar da sua incapacidade verbal, consegue comunicar o seu amor a Narciso, mas é cruelmente rejeitada. Assim, consome -se de paixão restando dela apenas os ossos convertidos em pedra e a voz a ecoar pelos montes.
 Alguns estudiosos propõem que a relação entre Eco e Narciso é uma inovação de Ovídio
Existe ainda a delicadeza da transformação do virgem, Narciso, em uma flor frágil, 
narkissus, da raiz grega narkè, significa narcose, entorpecimento. 
Trata-se de uma flor fria e úmida que procura a sombra e o frescor das fontes.
Ovídio traz em seu texto um elemento trágico, Narciso ao olhar o seu reflexo , ignora que é o seu próprio 
rosto e se apaixona perdidamente. 
É somente depois, quando percebe que os movimentos da imagem são idênticos ao seus é que se reconhece.
Então a dor deste reconhecimento o dilacera. 
Em outra obra, Fastos, Ovídio explica esta dor :
"Narciso, infeliz de não ter sido diferente dele mesmo"


Ovídio insiste no caráter auto-ilusório da imagem: 
"Ele ama uma coisa sem corpo, toma por corpo o que é uma sombra"
III, verso 416
Em seu livro, O erro de Narciso, Luis Lavelle atenta:

"Narciso se encerra na sua solidão para fazer sociedade consigo mesmo: e nesta perfeita
 suficiência esperada, experimenta sua própria impotência.
Ele inventou as palavras conhecimento de si e amor de si, mas se atormenta com a impossibilidade 
de cumprir os atos que essas palavras designam."
"O crime de Narciso é preferir no final, sua imagem a si mesmo. 
A impossibilidade em que se encontra de unir-se a ela só pode produzir nele o desespero. 
Narciso ama um objeto que ele não pode possuir. 
Porém, assim que começou a se debruçar para vê-lo, era a morte que ele desejava. 
Unir-se à própria imagem e confundir-se com ela significa morrer "


O mito de Narciso  teve grande impacto nos estudos psicológicos à partir da criação do conceito - narcisismo, cunhado por Freud em 1914. Nosso foco não é psicanalítico, mas é importante entender que o termo ganhou o senso comum e por vezes atravessa a própria compreensão literária. O narcisismo, para Freud, não constitui por si só uma patologia, ele é um integrador e protetor da personalidade e do psiquismo.Nos pacientes de funcionamento narcisista há uma exagerada preocupação com a aparência; pequenos defeitos físicos são intensamente valorizados. Apresentam uma necessidade exagerada de serem amados e admirados, buscam elogios e se sentem inferiores e infelizes quando criticados ou ignorados.

Podemos retomar nesta compreensão que o sofrimento está ligado diretamente ao amor-próprio, e que este pode ser agravado em uma cultura onde a auto-imagem é reverenciada. Vemos o crescimento do isolamento psíquico e com as tecnologias um aumento de um sentimento de vazio, que procura nos espelhos midiáticos algum conforto e auto-estima.

Há estudos que indicam que nosso cultura alimenta esta tendência narcisista e consequentemente o fracasso das relações.


Escute o podcast deste episódio no link abaixo : 

https://anchor.fm/psicopatologia/episodes/O desespero de Narciso

Narciso, óleo sobre tela, 113,3 x 94 cm, 1597-1599, Caravaggio 



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